Mbira volta a ganhar expressão na música moçambicana pela mão dos resistentes
- 01/12/2025
"Chamo de exaltação, porque a mbira está ativa. Se não estivesse ativa, não estaria a ser exaltada", diz à Lusa o gestor cultural Júlio Mariquel, diretor da Festa da Mbira, cuja nona edição está a decorrer em Maputo, sublinhando o propósito de celebrar o instrumento que ele próprio ensina os mais novos a tocar.
Composto por lâminas de metal montadas numa tábua de madeira, amplificado por uma caixa de ressonância, o instrumento produz sons hipnóticos e melódicos. A variante nyunga nyunga, mais compacta, tem entre 15 e 17 lamelas e o termo "mbira", das línguas shona (centro de Moçambique), significa teclar ou dedilhar, numa técnica baseada sobretudo nos polegares.
"Nós estamos a produzir o festival, a Festa da Mbira, anualmente, como forma de trazer o instrumento mbira presente na vida dos moçambicanos (...) Nós somos a resistência. É por isso que sempre dizemos que a mbira continua", aponta.
Entre a nova geração de tocadores de mbira, Mariquel destaca um adolescente de 14 anos, que começou a aprender o instrumento no ano passado e hoje integra apresentações do grupo Nghothi. Um exemplo que expressa o impacto das oficinas dedicadas à mbira, que aproximam crianças e jovens do instrumento.
"É um resultado de vários formados na cidade de Maputo", afirma Mariquel, recordando que a mbira nyunga nyunga ganhou grande visibilidade no Zimbabué, depois de o músico e professor Jack Tapera, que trabalhava nos caminhos de ferro em Tete, levar consigo o instrumento.
"Os zimbabueanos, desde a sua época de colonização, sempre tiveram espaço para manifestações culturais, eles desenvolveram, levaram para a Academia mbira, até hoje, assim como ela é conhecida. Refiro-me à mbira nyunga nyunga", diz o gestor cultural, sublinhando que a difusão internacional contrasta com o longo período em que o instrumento permaneceu adormecido em Moçambique.
Segundo explica, esse adormecimento começou a ser revertido após a independência, com iniciativas ligadas às nacionalizações e ao incentivo às artes tradicionais durante o Governo do primeiro Presidente, Samora Machel (1933-1986), movimentos culturais, ateliers e agrupamentos militares e comunitários estimularam a recuperação de instrumentos locais.
"A mbira existe em outros cantos da África também, e ela leva outros nomes, como quissanje, em Angola, chama-se dzavadzimbo também no Zimbabué, tem Matepe. Então, a mbira leva outros nomes em outras geografias da África", afirma, destacando o papel dos mestres na expansão do ensino do instrumento em Maputo e a formar novas gerações.
O diretor da Festa da Mbira explica que o risco de desaparecimento do instrumento foi real em vários períodos da história recente, marcado pela estigmatizarão das práticas tradicionais.
"O que quase fez desaparecer o instrumento foi a desvalorização da cultura local e a falta de espaços de circulação", diz, lembrando que tocar mbira chegou a ser associado a atraso ou ruralidade, afastando novos aprendizes.
Mariquel, 32 anos, descreve a sua própria relação com a mbira como exemplo dessa transmissão oral: "Comecei a ter aulas em 2008. Antes disso, eu mexia na mbira do meu irmão às escondidas. Depois ele decidiu ensinar-me de forma séria".
Acrescenta que, hoje, a mbira "está a ser exaltada através do festival e preservada através dos workshops infantis e para adultos".
Apesar do crescimento em Maputo, a presença do instrumento no país é desigual. Mariquel aponta exemplos fortes em Manica, Sofala e Cabo Delgado, mas reconhece que em províncias como Gaza e Niassa a prática é pouco visível.
"Os órgãos de informação não chegam aos pontos onde o instrumento (mbira) é tocado como tal. As nossas políticas públicas e culturais também não dão esse espaço para que o instrumento tenha a sua linha de desenvolvimento ou que possa chegar para aquilo que na maior parte da população nacional ou internacional a nível de publicação", lamenta.
O número de tocadores no país é desconhecido, mas Mariquel defende que devia ser feito um levantamento, com vista à preservação do instrumento. "Não tem um inquérito na base para poder perceber em cada distrito, localidade, vila, província, quantos tocadores existem, para depois fazermos uma somatória a nível nacional", indica, acrescentando que o levantamento não foi feito por falta de recursos.
Ainda assim, a Festa da Mbira tem criado mecanismos de identificação de novos talentos, com 'castings', sessões abertas e oficinas que acolhem iniciantes. Contudo, a falta de referências mediáticas e a ausência do instrumento nas escolas são, segundo o diretor, fatores que continuam a colocar a mbira em risco: "As crianças não podem gostar do que não veem. Se não há mbira na televisão nem nos currículos escolares, a juventude não a reconhece como parte da sua identidade".
A continuidade do instrumento, defende, depende também de políticas públicas consistentes: "Não basta o entusiasmo. É preciso integrar a mbira no ensino artístico, apoiar artesãos e garantir circulação nos meios culturais", afirma, lembrando que a falta de financiamento limita o alcance de iniciativas comunitárias e festivais.
Num contexto de revitalização cultural, a Festa da Mbira tem funcionado como plataforma de formação, apresentação e debate, reunindo músicos emergentes, investigadores e artesãos. O evento cruza o instrumento com teatro, poesia e artes visuais, reforçando a sua presença no universo artístico moçambicano.
A edição deste ano, que decorre desde 15 de novembro, inclui 'jam sessions', debates performativos, oficinas infantojuvenis e exposições em espaços como o Café Gil Vicente, a Galeria Piriquitas, o Museu Mafalala e a Associação de Músicos Moçambicanos. No 06 de dezembro realiza-se um concerto que junta tocadores experientes e jovens recém-formados.
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